Habitação
Sobrelotação: quantas pessoas podem viver na mesma casa?
Abril 8, 2024 · 4:22 pm
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O Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, divulgado recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), revelou que em 2023 “12,9% das pessoas viviam em alojamentos em que o número de divisões habitáveis (igual ou superior a quatro metros quadrados) era insuficiente para o número e o perfil demográfico dos membros do agregado, mais 3,5 pontos percentuais do que no ano anterior (9,4%)”.
Em 2023, a taxa de sobrelotação da habitação era mais elevada para a população mais jovem (21,8% para o grupo etário até aos 17 anos), diminuindo com a idade (13,9% para os adultos e 4,4% para os idosos).
À semelhança dos anos anteriores, o risco de viver numa situação de insuficiência do espaço habitacional foi mais significativo para a população em risco de pobreza (27,7% no ano passado, o que compara com 9,8% na restante população).
O aumento da sobrelotação em relação a 2022 foi transversal a todo o território, mas mais significativo nas regiões autónomas, com subidas de 7,9 pontos percentuais nos Açores e 7,3 na Madeira. No Continente, a sobrelotação aumentou em 3,3 pontos percentuais.
Os dados indicam que a taxa de sobrelotação em 2023 era mais elevada para a população residente em áreas predominantemente urbanas (14,9%).
Câmaras têm recebido reclamações pontuais sobre sobrelotação
A Lusa pediu a algumas câmaras municipais das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, as mais pressionadas pela crise da habitação, dados sobre sobrelotação.
Nove autarquias das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto descartam um cenário de sobrelotação na habitação municipal, confirmando, por outro lado, que têm recebido reclamações pontuais.
Contactadas as autarquias de Amadora, Cascais, Loures, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira, no norte da Área Metropolitana de Lisboa, e Alcochete, Almada, Barreiro, Moita e Seixal, no sul, sete responderam no prazo definido, de duas semanas, mas nenhuma assinalou um aumento da sobrelotação.
Vila Franca de Xira realçou que “este fenómeno começou a existir no concelho há alguns meses, era inexistente até então”, destacando que envolve “sobretudo a população imigrante, muitas vezes indocumentada”.
Porém, os dados indicam que o município tem uma “sobrelotação residual”. À data dos Censos de 2011, 1.218 residências encontravam-se em situação de sobrelotação (2,3% do total).
Área Metropolitana do Porto regista casos pontuais
O mesmo se verificou nas duas autarquias da Área Metropolitana do Porto: Porto e Matosinhos (Vila Nova de Gaia não respondeu).
Já na Área Metropolitana do Porto, a câmara de Matosinhos disse não ter recebido quaisquer queixas e que, “a existirem, serão casos pontuais”. Por seu lado, a autarquia do Porto indicou que “chegam queixas pontuais de habitações sobrelotadas” ao Departamento Municipal de Fiscalização, geralmente via Administração Regional de Saúde.
As queixas, adiantou o município, são apresentadas por “proprietários/inquilinos de frações do mesmo prédio onde se situa a fração sobrelotada ou por moradores de prédios vizinhos”.
A autarquia referiu ainda que, nos últimos dois anos, o Serviço Municipal de Proteção Civil registou 13 ocorrências de habitações sobrelotadas, sublinhando que este organismo só é chamado ao local no caso de incêndios ou outras ocorrências que obriguem ao realojamento de moradores ou causem insalubridade.
A par destas, “há ainda outras situações em que são os próprios ‘arrendatários’ do prédio ou fração sobrelotada que apresentam queixa sobre as condições de habitabilidade ou das condições do arrendamento”.
A Câmara Municipal de Lisboa informou ter feito, no último ano, 323 vistorias e 76 fiscalizações a casas sobrelotadas, tendo registado 239 queixas e denúncias.
“As juntas de freguesia de Arroios, Misericórdia e Penha de França foram as que mais denúncias remeteram para os serviços do urbanismo no último ano. Uma parte significativa das denúncias recebidas diz respeito a situações de sobrelotação em arrendamentos de curta duração”, indicou, na altura.
Proprietários, inquilinos e condomínios querem mais fiscalização
As associações de proprietários, inquilinos e condomínios estão preocupadas com o aumento de casos de sobrelotação habitacional e defendem o reforço da fiscalização.
Apesar de nenhuma ter dados concretos, são unânimes em assinalar que tem havido um aumento de referências à sobrelotação habitacional.
“Isso deve-se a duas situações, a falta de casas e o preço delas”, resume António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisboneses (AIL). A atual crise de habitação “obriga famílias a coabitarem”, diz, referindo também “a pressão dos imigrantes”.
Segundo os últimos dados do INE, a sobrelotação afeta mais os cidadãos de outras nacionalidades do que os de nacionalidade portuguesa (22,7 e 12,6%, respetivamente).
A Lusa perguntou se seria possível obter uma desagregação dessas outras origens, mas o INE respondeu que “não é viável obter resultados estatisticamente significativos por país de nacionalidade”.
Reclamações nos condomínios aumentam
Também à Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Administração de Condomínios (APEGAC) têm chegado “reclamações de sobrelotação em determinados apartamentos”, sobretudo nas zonas litorais e nos centros urbanos. O problema “já se vem notando há um tempo”, mas, “recentemente, tem havido mais queixas”, nota Vítor Amaral, presidente da APEGAC.
“Eu próprio tenho conhecimento de algumas situações em que se coloca a questão da salubridade”, admite, sublinhando que “o que está a causar isto é o exorbitante preço a que chegou o mercado de arrendamento” e que o arrendamento “não tem, sem dúvida alguma, a fiscalização que deveria ter”.
Sem “dados específicos” e reconhecendo que é “muito difícil” apurar a sobrelotação, Vítor Amaral arrisca dizer que “ocorrerá muito mais na imigração”, entre trabalhadores que se juntam para dividir a despesa.
Lojas transformadas em dormitórios
“Dormem aos 20 e aos 30, inclusivamente até no sistema cama quente [termo que se aplica aos casos em que a cama está sempre ocupada, mas por pessoas distintas em horários diferentes] e isso verifica-se porque não têm dinheiro para mais e estão indocumentados, etc”, corrobora António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários (ANP), que também não tem estatísticas.
“Há determinadas zonas, principalmente Lisboa […], no casco histórico, em que há […] sobrelotação e essa sobrelotação verifica-se fundamentalmente em relação a cidadãos asiáticos, que dormem até em lojas, coisas que são não-habitacionais”, retrata, situando as zonas de Mouraria, Intendente e Anjos.
Frias Marques dá conta de relatos de subaluguer não autorizado e de proprietários que alugam lojas que depois são transformadas em dormitórios.
A ANP recomenda aos associados “não fazerem contratos de arrendamento nessas circunstâncias, sabendo que aquilo vai ser um dormitório, porque até, em termos de segurança […] é uma bomba”.
Frias Marques sublinha que “as pessoas têm de estar legais” para arrendar uma casa e não duvida de que, “se o senhorio tomar todas as providências”, não haveria essas situações, ainda que os contratos sejam muitas vezes feitos por intermediários, porque “os senhorios já são pessoas de uma certa idade”.
Inquilinos defendem mais regulação
A AIL também não tem registo de queixas, mas admite que “são situações conhecidas e que já foram denunciadas”, não só nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, como noutros locais, por exemplo Beja.
“As coisas estão cada vez piores. O que se está a verificar relativamente aos imigrantes é horrível”, considera António Machado, apontando o dedo ao poder político por “não intervir, nem atuar”.
Neste contexto, “é cada vez mais urgente regular e fiscalizar” o mercado do arrendamento, “o agravamento da situação determina-o”, desde logo porque, de acordo com o INE, a sobrelotação verifica-se mais com arrendatários (23,6%) do que com proprietários (9,4%).
“Esta é a única atividade económica que não tem registo prévio, como por exemplo existe no turismo”, aponta.
“A fiscalização, neste momento, não cabe a ninguém”, critica, sugerindo uma de duas coisas: o reforço de meios e competências da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) ou a criação de uma nova entidade.
Os proprietários concordam que a fiscalização não tem funcionado, mas discordam da solução apontada pelos inquilinos.
O arrendamento – diz Frias Marques – “é uma atividade super regulamentada”, fiscal e juridicamente. O que falta é fiscalizar a imigração irregular e assegurar que as câmaras municipais atuam.
Lei não fixa quantas pessoas podem habitar uma casa
Nada na lei fixa um limite para o número de pessoas que pode habitar uma casa, ainda que, geralmente, nos contratos de arrendamento, os senhorios limitem a utilização ao agregado familiar e proíbam a hospedagem.
Entende-se como sobrelotado um espaço de habitação com um número de divisões habitáveis – com quatro metros quadrados ou mais – insuficiente para a dimensão e perfil demográfico do agregado.
Segundo a definição do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, vive-se em condições de sobrelotação da habitação se esta não dispuser de um número mínimo de espaços que permita: uma divisão comum; uma divisão para cada casal; uma divisão para cada adulto; uma divisão para cada duas pessoas do mesmo sexo com idades entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada pessoa de sexo diferente entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada duas pessoas com menos de 12 anos.
Porém, no que respeita à lei, a sobrelotação só tem as implicações pelas consequências que possa provocar, ou seja por situações que mereçam a intervenção de organismos públicos (por exemplo riscos para a segurança ou insalubridade).
“A questão está em saber se o problema social deve merecer a criação de normas jurídico-públicas com o objetivo de regular a locação para efeitos habitacionais”, considera, em declarações à Lusa, o advogado João Gaspar Simões, especialista em direito administrativo público.
No caso de se entender criar uma lei sobre sobrelotação, explicita, seria depois necessário identificar a quem caberia fiscalizá-la.