Ricardo Guimarães

Diretor da Confidencial Imobiliário

Opinião

Vamos falar sobre arrendamento?

2 Novembro, 2023 · 10:34

A notícia de que as rendas em 2024 não sofrerão qualquer travão e a lei será liminarmente aplicada, confesso, superou enormemente as minhas expectativas.

Governar, imagino, não é fácil. As pressões são enormes, em especial quando são amplificadas por uma imprensa, ela mesma, sujeita às mesmas pressões.

É preciso recuar a 1993 para encontrar taxas de inflação em torno dos 7%, neste caso com a diferença de advir de um processo desinflacionista, ainda no pós-25 de Abril. Isso mostra a natureza atípica da situação atual, justificando que toda uma nova geração estivesse impreparada para lidar com tal novidade. Assim, convém reconhecer, o congelamento respondeu a um consenso social num contexto de crescente crise habitacional.

Nesse quadro, a opção de atualização das rendas à taxa de inflação (reforçando os apoios aos mais carenciados) deve ser reconhecida como sendo uma “medida” claramente corajosa. Não só por ir contra o tal consenso, mas por constituir uma resposta efetiva à evidência de que a opção anterior tinha produzido efeitos contrários aos desejados, levando à contração da oferta e consequente agravamento das rendas.


"O “não-travão” aplicado é a primeira “medida” que integra o mercado como parte da solução, sendo um sinal de mudança de paradigma."


Em 30 de setembro último, recorrendo aos dados do SIR-Arrendamento, o jornal Expresso dava nota da forma como, quer na crise financeira como na pandemia, o arrendamento funcionou como um verdadeiro estabilizador social, havendo não só um aumento da oferta como uma redução nos valores das novas rendas contratadas. Ora, pelo contrário, na crise atual, apesar do número de vendas ter caído já mais de 20%, o arrendamento falhou claramente esse papel, havendo não só uma queda na oferta como um aumento vertiginoso nas rendas. O travão às rendas teve o efeito perverso de afastar a oferta e de levar os proprietários a antecipar para o imediato a atualização futura de rendas, que se anteviam congeladas.

Isso significa que a proteção da situação dos inquilinos foi feita à custa dos que estavam fora do mercado, cujas rendas subiram em 30%. Tal efeito é especialmente perverso quando “dentro” estão as gerações mais velhas e com rendas médias mais baixas e “fora” estão as gerações mais novas cujas rendas de partida, antes dos tais 30%, já eram mais elevadas.

O Governo deve ser aplaudido por ter compreendido a situação e ter tido a coragem de inverter a política. Ao fazê-lo, promoveu a confiança dos operadores, contribuindo assim para o potencial aumento da oferta, seja via casas devolutas ou operações de build-to-rent. Se o mercado de arrendamento tem sido alvo de uma política que tem tido como consequência a sua asfixia, o “não-travão” aplicado é a primeira “medida” que integra o mercado como parte da solução, sendo um sinal de mudança de paradigma.


"O Governo teve coragem. Mas se não completar a “reforma” iniciada, corre o risco de não colher benefícios."


Contudo, sendo um passo muito importante, não é suficiente. Para a generalização de um mercado de arrendamento acessível, mesmo considerando os benefícios fiscais associados, será igualmente essencial rever o conceito de “renda acessível”, já que esta implica um desconto de 20% face ao valor de mercado, independentemente de em muitas geografias esse valor ser, já de si, muito baixo, dado ser ditado por rendas de casas usadas, muitas vezes de qualidade e conservação questionáveis.

Basicamente, o regime de arrendamento acessível situa-se num limbo de impossibilidade pois onde as rendas medianas (ajustadas) viabilizam o investimento não há terrenos (acessíveis) disponíveis e onde os há as rendas não viabilizam o investimento. A única quadratura serão os solos públicos, cedidos em direito de superfície. Mas, convenhamos, tal oferta será sempre curta para as necessidades.

A “renda acessível” deve assentar numa “renda técnica” que dê racionalidade ao investimento, desde logo condicionado pelos custos de construção.

Juntava, como agenda, a reversão do limite de 2% para o aumento das rendas entre contratos, uma regra que prejudica os inquilinos, pois impede a descida das rendas, cujo novo nível se converteria num ónus definitivo para o proprietário.

O Governo teve coragem. Mas se não completar a “reforma” iniciada, corre o risco de não colher benefícios.

Vamos falar sobre arrendamento? Vamos fazer uma grande conferência sobre arrendamento para assegurar o seu sucesso?

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